quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O Que São os Estados Holotrópicos de Consciência? 1ª parte


Stanislav Grof

texto do capítulo 1 do livro Psicologia do Futuro, Stanislav Grof. Ed Heresis



O Potencial Curativo e Heurístico dos Estados Não-Comuns de Consciência

Este livro resume minhas experiências e observações de mais de quarenta anos de pesquisas sobre estados não-comuns de consciência. Meu interesse pri­meiro é enfocar os aspectos heurísticos desses estados, isto é, como eles podem contribuir para nossa compreensão da natureza da consciência e da psique hu­mana. Como minha formação foi em psiquiatria clínica, também darei especial atenção ao potencial de cura, de transformação e de evolução através dessas experiências. Para esse propósito, o termo estados não-comuns de consciência é muito amplo e geral. Ele inclui uma larga gama de condições que são de pouco ou nenhum interesse para a perspectiva heurística ou terapêutica. A consciência pode ser profundamente modificada por uma variedade de processos patológicos - por traumas cerebrais, por intoxicações com venenos químicos, por infecções, ou por processos degenerativos ou de circulação no cérebro. Seguramente, tais condições podem resultar em profundas mudanças mentais que as relegariam à categoria de "estados não-comuns de consciência". Contudo, tais danos ocasionam "delírios triviais" ou "psicoses orgânicas", esta­dos muito importantes clinicamente, mas irrelevantes para nossa discussão. É característico das pessoas que sofrem de tais estados encontrarem-se desorienta­das: elas não sabem quem são, onde estão ou que dia é. Além disso, suas funções intelectuais ficam significativamente danificadas e, tipicamente, elas sofrem de amnésia após suas experiências. Neste livro, enfocarei um grande e importante subgrupo dos estados não­-comuns de consciência que difere significativamente do restante e representa uma inestimável fonte de novas informações sobre a psique humana, tanto na saúde quanto na doença. Ele também tem um notável potencial terapêutico e transformador. Com o passar dos anos, observações clínicas diárias me comven­ceram da natureza extraordinária dessas experiências e das amplas conseqüênci­as que elas implicam em relação à teoria e à prática da psiquiatria. Achei difícil acreditar que a psiquiatria contemporânea não reconheça suas especificidades e não tenha terminologia especial para elas. Por perceber claramente que elas merecem ser destacadas do resto, em uma categoria especial, cunhei o termo holotrópico (Grof, 1992). Esta palavra com­posta significa literalmente "orientado para a totalidade/inteireza" ou "indo em direção à totalidade/inteireza" (do grego holos = totalidade/inteireza e trepein = indo em direção a algo). Mais adiante, o significado completo deste termo e­ a justificação para seu uso ficarão mais claros. Ele sugere que, no estado de consci­ência cotidiana, identificamo-nos com apenas uma pequena fração de quem re­almente somos. Nos estados holotrópicos, podemos transcender as fronteiras restritas do ego corporal e reivindicar nossa identidade total.

Estados Holotrópicos de Consciência

Nos estados holotrópicos, ocorre uma mudança qualitativa de consciência, de forma profunda e fundamental, que não sofre danos como ocorre nas condi­ções de causa orgânica. Tipicamente, permanecemos completamente orienta­dos em termos de espaço e tempo e não perdemos totalmente o contato com a realidade diária. Ao mesmo tempo, nosso campo de consciência é invadido por conteúdos de outras dimensões da existência que podem ser muito intensos e até mesmo avassaladores. Assim, experienciamos simultaneamente duas reali­dades muito diferentes, "temos cada um dos pés em um mundo diferente". Os estados holotrópicos caracterizam-se por dramáticas mudanças de per­cepção em todas as áreas sensoriais. Quando fechamos os olhos, nosso campo de visão pode ser inundado por imagens provenientes de nossa história pessoal e do inconsciente individual e coletivo. Podemos ter visões e experiências retra­tando vários aspectos dos reinos animal e botânico, da natureza em geral ou do cosmo. Nossas experiências podem nos levar aos domínios de seres arquetípicos e a regiões mitológicas. Quando abrimos os olhos, nossa percepção do ambiente pode sofrer uma transformação ilusória através de projeções vivas desse material inconsciente. Isso pode se dar acompanhado por uma grande variedade de ex­periências envolvendo outros sentidos - sons variados, sensações físicas, cheiros e sabores. As emoções associadas aos estados holotrópicos cobrem um largo espectro que, tipicamente, estende-se muito além dos limites de nossa experiência diária, tanto em sua natureza quanto em intensidade. Elas vão desde sensações de enle­vo extático, bem-aventurança celestial e "paz além de qualquer compreensão" a episódios de terror abismal, raiva assassina, desespero total, culpa consumidora e outras formas inimagináveis de extremo sofrimento emocional. Formas extre­mas desses estados emocionais igualam-se às descrições dos reinos paradisíacos ou celestiais e dos infernos constantes nas escrituras das grandes religiões do mundo. Um aspecto particularmente interessante dos estados holotrópicos é seu efeito sobre os processos de pensamento. O intelecto não fica debilitado, mas opera de uma forma significativamente diferente do seu modo de funcionamen­to diário. Embora não possamos confiar em nosso julgamento sobre assuntos práticos, podemos ser efetivamente inundados por notáveis e válidas informa­ções sobre uma variedade de assuntos. Podemos ter profundos insights psicológi­cos relativos à nossa história pessoal, dinâmicas inconscientes, dificuldades emo­cionais e problemas interpessoais. Também podemos experimentar revelações extraordinárias sobre vários aspectos da natureza e do cosmo que em muito trans­cendem nossa formação educacional e intelectual. Contudo, de longe, os mais interessantes insights disponíveis durante os estados holotrópicos tratam de ques­tões filosóficas, metafísicas e espirituais. Podemos experimentar seqüências de morte e renascimento psicológicos e um largo espectro de fenômenos transpessoais, tais como sensações de total união com outras pessoas, com a natureza, com o universo e com Deus. Podemos desvendar o que parecem ser memórias de outras encarnações, encontrar pode­rosas figuras arquetípicas, ter comunicação com seres desencarnados e visitar numerosas paisagens mitológicas. Esse tipo de experiências holotrópicas são a principal fonte de cosmologias, mitologias, filosofias e sistemas religiosos que descrevem a natureza espiritual do cosmo e da existência. Elas são a chave para a compreensão da vida ritual e espiritual da humanidade, desde o xamanismo e as cerimônias sagradas das tribos aborígenes até as grandes religiões do mundo.
(Grof, 2000)