quarta-feira, 18 de junho de 2008

O Que São os Estados Holotrópicos de Consciência? 2ª parte


texto do capítulo 1 do livro Psicologia do Futuro, Stanislav Grof. - Ed Heresis

Estados Holotrópicos de Consciência e a História da HumanidadeQuando examinamos o papel desempenhado pelos estados holotrópicos de consciência na história da humanidade, a descoberta mais surpreendente é uma gritante diferença entre a atitude da civilização industrial do Ocidente e as atitudes de todas as culturas antigas e pré-industriais em relação a esses estados. Contrastando com a humanidade moderna, todas as culturas nativas tinham os estados holotrópicos em alta estima, dedicando tempo e esforço para desenvol­ver formas seguras e eficazes para induzi-Ias. Elas utilizavam esses estados como o principal veículo em sua vida espiritual e ritual, assim como para vários outros propósitos importantes.
No contexto das cerimônias sagradas, os estados não-comuns permitiam, para os nativos, um direto contato experiencial com as dimensões arquetípicas da realidade - divindades, reinos mitológicos e forças numinosas da natureza. Outra área na qual esses estados desempenhavam um papel crucial era o diag­nóstico e a cura de várias desordens. Embora muitas vezes as culturas aborígenes possuíssem um conhecimento impressionante de remédios naturais, davam pri­oridade para a cura metafísica. O que tipicamente envolvia a indução de estados holotrópicos de consciência - para o cliente, para o curandeiro ou para ambos ao mesmo tempo. Em muitas situações, um grupo grande ou até mesmo uma tribo inteira entrava em transe de cura, como até hoje se dá, por exemplo, entre os kung bushmen, no deserto africano do Kalahari.
Os estados holotrópicos também foram usados para cultivar a intuição e a percepção extra-sensorial com uma variedade de propósitos práticos, tais come encontrar pessoas ou objetos perdidos, obter informações sobre pessoas em lo­cais distantes e seguir o movimento de um jogo. Além disso, serviam como fonte de inspiração artística, provendo idéias para rituais, pinturas, esculturas e can­ções. O impacto que as experiências vividas nesses estados surtiu sobre a vida cultural das sociedades pré-industriais e sobre a história espiritual da humanida­de foi enorme.
A importância dos estados holotrópicos para as culturas antigas e aboríge­nes reflete-se na quantidade de tempo e energia dedicados ao desenvolvimento de "técnicas do sagrado" - vários procedimentos de alteração da consciência capazes de induzir estados holotrópicos com propósitos rituais e espirituais. Es­ses métodos combinam, de várias maneiras, tambores e outros tipos de percus­são, música, cantos, danças rítmicas, controle da respiração e formas especiais de percepção. Um longo período de isolamento, a permanência em uma caverna,. no deserto, no gelo ártico ou em montanhas altas também desempenha um im­portante papel na indução de estados holotrópicos. Intervenções fisiológicas extremas utilizadas com esse propósito incluem o jejum, privação de sono, desi­dratação e até mesmo grandes sangrias, utilização de purgativos e laxantes po­derosos e a imposição de dores severas.
Uma tecnologia particularmente eficaz, na indução de estados holotrópicos tem sido a utilização ritual de plantas e substâncias psicodélicas. A lendária po­ção divina conhecida como haoma no antigo Zend Avesta Persa e soma na Índia era usada pelas tribos indo-iranianas há vários milênios e foi, provavelmente, a fonte mais importante da religião e da filosofia védicas. Preparações de diferen­tes tipos de cânhamo têm sido fumadas e ingeridas sob diferentes denominações (haxixe, charas, bhang, ganja, kif, maconha) nos países orientais, na África e na re­gião do Caribe para recreação, prazer e durante cerimônias religiosas. Elas têm representado um importante sacramento para grupos tão diversos como os brâmanes, algumas ordens sufis, os antigos skythians, e os rastafaris jamaicanos­

Tabela 1.1 - Técnicas Antigas e Aborígenes para a Indução de Estados Holotrópicos

Trabalhos respiratórios, diretos ou indiretos
(pranayama, ioga bastrika, "respiração de fogo" budista, respiração sufi, ketjak balinês, música de garganta dos esquimós inuit etc.)

Tecnologias sonoras (tambores, chocalhos, utilização de paus, sinos, gongos, música, cantos, mantras, didjeridoos, berrantes)

Danças e outras formas de movimento (rodopios dos dervishes, danças dos lamas, dança de transe dos bushmen do Kalahari, hatha ioga, tai chi, chigong etc.)

Isolamento social e privação sensorial (permanência em desertos, cavernas, topos de monta­nhas, campos de neve, busca de visão etc.)

Sobrecarga sensorial (uma combinação de estímulos acústicos, visuais e proprioceptivos du­rante rituais aborígenes, dor extrema etc.)

Meios fisiológicos (jejum, privação de sono, purgativos, laxantes, sangrias (maias), procedi­mentos fisicos dolorosos (dança do sol dos lakota sioux, subincisão, obturações dentárias)

Meditação, orações e outras práticas espirituais (várias iogas, tantra, práticas do zen soto e rinzai, dzogchen tibetano, hesicasmo cristão (oração de Jesus), os exercícios de Inácio de Loyola etc.)

Materiais psicodélicos de plantas e animais (haxixe, peiote, teonanacatl, ololiuqui, ayahuasca, iboga, ipoméia havaiana, arruda síria, secreção da pele do sapo bufo alvarius, peixe kyphosus fuscus do Pacífico etc.)

A utilização cerimonial de várias substâncias psicodélicas também tem uma longa história na América Central. Plantas que alteram a mente com muita eficá­cia eram bastante conhecidas em várias culturas indígenas pré-hispânicas - entre os astecas, maias e toltecas. As mais famosas entre elas são o cacto mexicano peiote (lophophora williamsii), o cogumelo sagrado teonanacatl (psilocybe mexicana) e ololiuqui,, sementes de diferentes variedades de plantas trepadeiras (ipomea violacea e Turbina corymbosa). Essas substâncias têm sido usadas como sacramentos até hoje pelos huichol, mazatec, chichimea, cora e outras tribos de índios mexica­nos, assim como pela Native American Church.
A famosa ayahuasca, yajé ou santo-daime sul-americana é uma decocção de um cipó da selva (banisteriopsis caapi) combinado com outras plantas. A região amazônica e as ilhas do Caribe também são conhecidas por uma variedade de rapés psicodélicos. Tribos aborígenes na África ingerem e inalam preparados da casca do arbusto iboga (tabernanthe iboga). Utilizam-nas em pequenas quantida­des como estimulantes e em maiores dosagens em rituais de iniciação para homens e mulheres. Os compostos psicodélicos de origem animal incluem as se­creções da pele de certos sapos (bufo alvarius) e a carne do peixe kyphosus fuscus do Pacífico. A lista acima representa apenas uma pequena fração de materiais psicodélicos que têm sido utilizados há muitos séculos em práticas rituais e espi­rituais de vários países do mundo.
A prática da indução de estados holotrópicos pode ser rastreada até o início da história humana. É o traço característico mais importante do xamanismo, o sistema espiritual e arte de cura mais antigo da humanidade. A carreira de mui­tos xamãs inicia-se com uma crise psicoespiritual espontânea ("doença xamanística"). É um estado visionário poderoso, durante o qual o futuro xamã tem a experiência de uma jornada ao submundo, o domínio dos mortos, onde ele ou ela é atacado por espíritos malignos, sujeitado a várias provações, assassi­nado e desmembrado. A isso segue-se uma experiência de renascimento e ascen­são aos domínios celestiais.
O xamanismo está conectado. com os estados holotrópicos ainda de outra maneira: os xamãs experientes são capazes de entrar em transe por pura vonta­de e de forma controlada. Usam esse estado para diagnosticar doenças, curar, ter percepções extra-sensoriais, explorar diferentes dimensões da realidade e para outros propósitos. Também é comum eles induzirem estados holotrópicos em outros membros de suas tribos e desempenharem o papel de acompanhantes - fornecendo a orientação e o apoio necessários para aqueles que estão atraves­sando os complexos territórios do Além.
o xamanismo é extremamente antigo, existe há provavelmente trinta ou quarenta mil anos e suas raízes podem ser rastreadas até a era paleolítica. As paredes das famosas cavernas no sul da França e norte da Espanha - como as de Lascaux, Font de Gaume, Les Trois Frères, Altamira e outras - são decoradas com belíssimas imagens de animais. Em sua maior parte, elas representam espé­cies que vagavam nas paisagens da Idade da Pedra - bisões, cavalos selvagens, veados, cabras montanhesas, mamutes, lobos, rinocerontes e renas. Contudo, outras imagens, como a Besta Encantada em Lascaux, são criaturas míticas que têm, claramente, significados mágicos e rituais. Em várias dessas cavernas, há pinturas e entalhes de figuras estranhas combinando traços humanos e animais que, sem dúvida, representam antigos xamãs.
A mais conhecida dessas imagens é o Feiticeiro de Les Trois Frères, uma misteriosa figura composta que combina vários símbolos masculinos. Ele tem a armação de veado, olhos de coruja, cauda de lobo ou cavalo selvagem, barba humana e garras de leão. Outra famosa escultura de um xamã no mesmo com­plexo de cavernas é o Mestre das Feras, presidindo os Felizes Campos de Caça repletos de belíssimos animais. Também muito conhecida é a cena de caça na parede de Lascaux. Ela retrata um bisão ferido e a figura deitada de um xamã com o pênis ereto. A gruta conhecida por La Gabillou abriga o entalhe de uma figura xamanística em movimento dinâmico a quem os arqueólogos denominam como O Dançarino.
No chão de argila de uma dessas cavernas, Tuc d'Audoubert, os pesquisa­dores encontraram pegadas, em arranjo circular, à volta da figura de dois bisões de argila, sugerindo que seus habitantes conduziam danças, semelhantes àque­las até hoje praticadas por várias culturas aborígenes, para induzir estados de transe. As origens do xamanismo podem ser rastreadas até outro culto neandertal ainda mais antigo, o do urso da caverna, como é exemplificado pelos santuários animais do período interglacial encontrados em grutas na Suíça e no sul da Ale­manha.
O xamanismo não é apenas antigo: ele também é universal - pode ser encontrado na América do Norte e do Sul, na Europa, África, Ásia, Austrália, Micronésia e Polinésia. O fato de, através da história humana, tantas culturas distintas terem achado as técnicas xamanísticas úteis e relevantes sugere que os estados holotrópicos envolvem o que os antropólogos chamam de "mente primal", um aspecto básico e primordial da psique humana que transcende raça, sexo, cultura e tempo histórico. Nas culturas que escaparam à profunda influência da civilização industrial do Ocidente, as técnicas e procedimentos xamanísticos so­brevivem até hoje.
Outro exemplo de transformação psicoespiritual culturalmente sanciona­da envolvendo estados holotrópicos são os eventos rituais denominados pelos antropólogos como ritos de passagem. Esta expressão foi cunhada pelo antropólogo holandês Arnold van Gennep, autor do primeiro tratado científico sobre o assunto (Van Gennep, 1960). Cerimônias desse tipo sempre fizeram parte de todas as culturas nativas conhecidas e ainda fazem parte de muitas sociedades pré-industriais. Seu principal propósito é o de redefinir, transformar e consa­grar indivíduos, grupos e até mesmo culturas inteiras.
Os ritos de passagem são conduzidos em épocas de mudanças críticas na vida de indivíduos ou de uma cultura. A época em que se dão costumam coinci­dir com importantes transições fisiológicas e sociais, tais como o nascimento de uma criança, circuncisão, puberdade, casamento, menopausa e morte. Rituais semelhantes também estão associados à iniciação ao status de guerreiro, à aceita­ção em sociedades secretas, festivais de renovação, cerimônias de cura e mudan­ças geográficas de grupos humanos.
Ritos de passagem envolvem poderosos procedimentos de alteração men­tal que induzem experiências de desorganização psicológica que resultam em uma integração em nível mais elevado. Esse episódio de morte e renascimento psicoespirituais é então interpretado como morrer para o papel antigo e nascer para o novo. Por exemplo, nos ritos de puberdade, os neófitos entram no proce­dimento como meninos e meninas para emergir como adultos com todos os direitos e deveres que acompanham esse status. Em todas essas situações, o indi­víduo ou grupo social deixa para trás uma forma de ser para entrar em circuns­tâncias de vida totalmente novas.
A pessoa que volta não é a mesma que entrou no processo de iniciação. Havendo passado por uma profunda transformação psicoespiritual, ele ou ela tem uma conexão pessoal com as dimensões numinosas da existência, assim como uma visão de mundo nova e mais ampla, uma melhor auto-imagem e um sistema de valores diferente. Tudo isso resulta de uma crise induzida propositadamente, a qual toca o âmago do ser do neófito e que, às vezes, é aterradora, caótica e desorganizadora. Assim, os ritos de passagem oferecem um outro exemplo de uma situação na qual um período de desintegração e tumulto temporários leva a uma sanidade e bem-estar maiores.
Os dois exemplos de "desintegração positiva" que expus até o momento­ - crise xamanística e a experiência do rito de passagem - têm muitos pontos em comum, mas também diferem de algumas maneiras importantes. A crise xamanística invade a psique do futuro xamã de forma inesperada, sem avisar: é de natureza espontânea e autônoma. Em comparação, os ritos de passagem são fruto de uma cultura e seguem um plano predeterminado. As experiências dos neófitos são o resultado de específicas "tecnologias do sagrado", desenvolvi­das e aperfeiçoadas pelas gerações anteriores.
Em culturas que veneram xamãs e também conduzem ritos de passagem, a crise xamanística é considerada como uma forma de iniciação muito superior ao rito de passagem. Ela é vista como uma intervenção do poder superior e, como tal, uma indicação da escolha divina e de um chamado especial. A partir de outra perspectiva, os ritos de passagem representam um passo à frente na apre­ciação cultural do valor positivo dos estados holotrópicos. As culturas xamanísticas aceitam e têm alta estima pelos estados holotrópicos que ocorrem espontanea­mente, durante crises de iniciação, assim como os transes de cura experimenta­dos ou induzidos por xamãs reconhecidos. Os ritos de passagem introduzem os estados holotrópicos na cultura em larga escala, os institucionalizam, e fazem deles parte integrante de suas vidas rituais e espirituais.
Os estados holotrópicos de consciência também desempenharam um pa­pel crucial nos antigos mistérios de morte e renascimento, procedimentos sagrados e secretos largamente disseminados no mundo antigo. Esses mistérios baseavam­-se em histórias mitológicas sobre divindades que simbolizavam morte e transfi­guração. Na antiga Suméria eram Inanna e Tammuz, no Egito eram Ísis e Osíris, e na Grécia as divindades Átis, Adônis, Dionísio e Perséfone. Seus corresponden­tes mesoamericanos foram o Quetzalcoatl asteca, ou a Serpente Emplumada, e os Heróis Gêmeos do Popol Vuh maia. Esses mistérios eram particularmente populares na região mediterrânea e no Oriente Médio, conforme é exemplificado pelas iniciações nos templos da Suméria e do Egito, pelos mistérios mitráicos, ou pelos ritos gregos, as bacanais e os mistérios de Elêusis.
Um impressionante testemunho do poder e impacto dessas experiências é o fato de os mistérios conduzidos no santuário de Elêusis, perto de Atenas, se darem regular e ininterruptamente, a cada cinco anos, por um período de quase dois mil anos. Mesmo então, eles não paravam de atrair a atenção do mundo antigo. As atividades cerimoniais de Elêusis foram brutalmente canceladas quando o imperador cristão Teodósio interditou a participação nos mistérios e em todos os outros cultos pagãos. Pouco tempo mais tarde, em 395 d.C., os invasores góti­cos destruíram o santuário.
No telestérion, o gigantesco salão de iniciação em Elêusis, mais de três mil neófitos experimentavam simultaneamente profundas transformações psicoespirituais. A importância cultural desses mistérios para o mundo antigo e seu ainda não reconhecido papel na história da civilização européia tornam-se evidentes quando nos damos conta de que, entre seus iniciados, havia muitas figuras ilustres da antigüidade. A lista de neófitos incluía os filósofos Platão. Aristóteles, Epicteto, o líder militar Alcebíades, os teatrólogos Eurípedes e Sófocles e o poeta Píndaro. Outro iniciado famoso, Marco Aurélio, era fascinado pelas perspectivas escatológicas oferecidas por esses ritos. O estadista e filósofo roma­no, Marco Túlio Cícero tomava parte nos mistérios e escreveu um relato entusi­asmado dos seus efeitos e impacto sobre as civilizações antigas (Cícero, 1977).
Outro exemplo do grande respeito e influência que as antigas religiões misteriosas tinham sobre o mundo antigo é o mitraísmo. Ele começou a se difun­dir pelo império romano no século 1° d.C., alcançou seu ápice no século 3°, e sucumbiu ao cristianismo no final do século 4°. No ponto alto do culto, podia-se encontrar os santuários subterrâneos mitráicos (mithrea) desde as praias do mar Negro até as montanhas da Escócia e a fronteira do deserto do Saara. Os misté­rios mitráicos representavam a religião irmã do cristianismo e seu concorrente mais importante (Ulansey, 1989).
As especificidades dos procedimentos de alteração mental nesses ritos se­cretos permaneceram, em grande parte, desconhecidas, embora seja provável que a sagrada poção kykeon, que representava um papel fundamental nos misté­rios eleusianos, fosse um preparado contendo alcalóides de ergotina, semelhantes ao LSD. Também é muito provável que materiais psicodélicos fizessem parte das bacanais e de outros ritos. Os gregos antigos ainda não conheciam o processo de destilação do álcool, mas, segundo relatos, os vinhos utilizados nos rituais de Dionísio tinham que ser diluídos de três a vinte vezes, e apenas três copos levavam alguns neófitos "à beira da insanidade" (Wasson, Hofmann, & Ruck, 1978).
Além das tecnologias do sagrado antigas e aborígenes acima mencionadas, muitas grandes religiões desenvolveram procedimentos psicoespirituais sofistica­dos, especificamente elaborados para induzir experiências holotrópicas. A essa classe pertencem, por exemplo, diferentes técnicas de ioga, meditações utilizadas no vipassana, zen, e budismo tibetano, assim como exercícios espirituais da tradição taoísta e complexos rituais tântricos. Aqui podemos adicionar várias elaboradas abordagens utilizadas pelos sufis, os místicos do Islã. Em suas cerimônias­ sagradas, ou zikers, eles regularmente utilizavam respiração intensa, cânticos devocionais e danças rodopiantes que induzem transes.
Da tradição judáico-cristã, aqui podemos mencionar os exercícios de respiração dos essênios e seu batismo que quase envolvia o afogamento, a oração de Jesus cristã (hesicasmo), os exercícios de Inácio de Loyola e vários procedimen­tos cabalísticos e hassídicos. As abordagens elaboradas para induzir ou facilitar ciências espirituais diretas são características das ramificações místicas das grandes religiões e de suas ordens monásticas.

Estados Holotrópicos na História da PsiquiatriaA clara aceitação dos estados holotrópicos na era pré-industrial contrasta com a atitude complexa e confusa da civilização industrial em relação a eles. Os estados holotrópicos de consciência desempenharam um papel muito impor­tante no início da história da psicologia profunda e da psicoterapia. Nos manu­ais da psiquiatria, as raízes da psicologia profunda costumam ser rastreadas de volta às sessões de hipnose com pacientes histéricos conduzidas por Jean Martin Charcot na Salpetrière, Paris, e à pesquisa da hipnose conduzida por Hippolyte Bernheim e Ambroise Liébault em Nancy. Sigmund Freud visitou ambos os lugares durante sua jornada de estudos na França e aprendeu a técnica da indução à hipnose. Ele a utilizou em suas explorações iniciais para acessar o inconsciente de seus pacientes. Posteriormente, mudou sua estratégia radicalmente e trocou essa abordagem pelo método de livres associações.
Além disso, as idéias iniciais de Freud foram inspiradas por seu trabalho ­com uma paciente a quem tratava em parceria com seu colega Joseph Breuer. Essa jovem, a quem Freud se referia em seus escritos como srta. Anna O., sofria de graves sintomas histéricos. Durante suas sessões terapêuticas, ela experimentava, espontaneamente, estados holotrópicos de consciência. Neles, ela regressa­va à infância e revivia várias lembranças traumáticas subjacentes à sua desordem neurótica. Ela considerou essas experiências como uma grande ajuda e referiu-­se a elas como uma "limpeza da chaminé". Em Estudos da histeria, os dois terapeutas recomendaram a regressão hipnótica e a ab-reação emocional posterior a trau­mas como forma de tratamento para as psiconeuroses (Freud & Breuer, 1936).
Em seu trabalho posterior Freud mudou da experiência emocional direta em estado holotrópicos para a livre associação em estado comum de consciência.. Ele também substituiu a ênfase no reviver consciente e na ab-reação emocional do material inconsciente pela análise de transferência, e o trauma efetivo pelas fantasias edipianas. Em retrospecto, esses parecem ter sido infelizes desenvolvi­mentos que levaram a psicoterapia ocidental na direção errada nos cinqüenta anos subseqüentes (Ross, 1989). Embora a terapia verbal possa ser muito útil para o aprendizado interpessoal e para retificar desajustes de interação e comu­nicação nos relacionamentos humanos (e.g., terapia de casal e de família), ela é ineficaz para lidar com bloqueios emocionais e bioenergéticos e com macrotraumas que subjazem a muitas desordens emocionais e psicossomáticas.
Como resultado desse desenvolvimento, na primeira metade do século 20 a psicoterapia era praticamente sinônimo de falar - entrevistas face-a-face, livres associações no divã e o descondicionamento behaviorista. Simultaneamente, os estados holotrópicos, inicialmente vistos como uma eficaz ferramenta terapêuti­ca, foram associados a patologia e não a cura.
Essa situação começou a mudar nos anos 50, com o aparecimento da tera­pia psicodélica e com inovações radicais na psicologia. Um grupo de psicólogos americanos, liderados por Abraham Maslow, insatisfeitos com o behaviorismo e a psicanálise freudiana, lançaram um novo movimento revolucionário, a psicolo­gia humanista. Em pouco tempo, esse movimento tornou-se muito popular e criou o contexto para um largo espectro de terapias baseadas em princípios inteira­mente novos.
Enquanto as psicoterapias tradicionais usavam meios predominantemen­te verbais e a análise intelectual, essas novas, terapias ditas experienciais, enfatizavam a experiência direta e a expressão das emoções. Muitas delas inclu­íam também várias formas de trabalho corporal como parte integrante do pro­cesso terapêutico. Provavelmente, a mais famosa dessas novas abordagens é a terapia Gestalt de Fritz Perls (Perls, 1976). Apesar de sua ênfase em experiência emocional, a maioria dessas terapias ainda conta, em grande medida, com a comunicação verbal e requer a permanência do cliente em um estado comum de consciência.
As inovações mais radicais no campo terapêutico têm sido abordagens tão poderosas que modificam profundamente o estado de consciência dos clientes, como a terapia psicodélica, várias abordagens neo-reichianas, terapia primal, renascimento e algumas outras. Minha esposa Christina e eu desenvolvemos o trabalho de respiração holotrópica, um método que pode facilitar estados holotrópicos profundos, de forma muito simples - uma combinação de respira­;ão consciente, música evocativa e trabalho corporal focalizado (Grof, 1988). Examinaremos a teoria e a prática dessa poderosa forma de auto-exploração e psicoterapia mais adiante.
A pesquisa psicofarmacológica moderna enriqueceu o arsenal de métodos indução a estados holotrópicos de consciência adicionando substâncias psicodélicas em forma química pura, seja isoladas de plantas ou sintetizadas em labo­ratório. Aqui se incluem os tetraidrocanabinóis (THC), princípios ativos do haxixe da maconha, a mescalina do peiote, a psilocibina e a psilocina dos cogumelos mágicos mexicanos e vários derivados da triptamina dos rapés psicodélicos utili­zados no Caribe e na América do Sul. O LSD, ou dietilamida do ácido lisérgico, uma substância semi-sintética: o ácido lisérgico é um produto natural da ergotina (esporão do centeio) e seu grupo de diatilamida é adicionado no laboratório. Os sintéticos psicodélicos mais famosos são os derivados da anfetamina MDA, MDMA (Adam ou Ecstasy), STP e 2-CB.
Também existem técnicas laboratoriais muito eficazes para alterar a cons­ciência. Uma delas é o isolamento sensorial, que envolve uma redução significativa de estímulos sensoriais expressivos (Lilly, 1977). Em sua modalidade mais extre­ ma, o indivíduo é privado de quaisquer informações sensoriais através da sub­mersão em um tanque escuro e à prova de som, com água na temperatura do corpo. Outro método laboratorial de mudança de consciência, bastante conheci­do, é o biofeedback, pelo qual o indivíduo é guiado, com sinais eletrônicos de feedback (retroalimentação), a estados holotrópicos de consciência caracterizados pela preponderância de certas freqüências específicas de ondas cerebrais (Green & Green, 1978). Também podemos mencionar aqui as técnicas de privação de sono e sonho e o sonhar lúcido (La Berge, 1985).
È importante enfatizar que episódios de estados holotrópicos de duração variada também podem ocorrer espontaneamente, sem qualquer causa identificável e específica e, muitas vezes, contra a vontade das pessoas envolvi­das. Como a psiquiatria moderna não faz diferença entre estados místicos ou espirituais e doenças mentais, as pessoas que experimentam esses estados costu­mam ser rotuladas de psicóticas, são hospitalizadas e recebem o tratamento de rotina com supressores psicofarmacológicos. Minha esposa Christina e eu nos referimos a esses estados como crises psicoespirituais ou emergências espirituais. Acre­ditamos que, devidamente apoiadas e tratadas, elas podem resultar em cura emocional e psicossomática, transformação positiva da personalidade e evolução da consciência (Grof & Grof, 1989, 1990). Voltarei a esse importante tópico em um capítulo posterior.
Embora tenha me interessado profundamente por todas as categorias de estados holotrópicos acima mencionados, desenvolvi a maior parte do meu tra­balho nas áreas de terapia psicodélica, respiração holotrópica e emergência es­piritual. Este livro baseia-se predominantemente em minhas observações dessas três áreas nas quais tenho maior experiência pessoal. Contudo, as conclusões gerais que farei a partir de minhas pesquisas aplicam-se a todas as situações que envolvem estados holotrópicos.

Psiquiatria Ocidental: Concepções Errôneas e Necessidade Urgente de Revisão O advento da terapia psicodélica e de poderosas técnicas experienciais reintroduziram os estados holotrópicos no arsenal da psiquiatria moderna. Con­tudo, desde o início, a comunidade acadêmica dominante tem demonstrado uma forte resistência contra essas abordagens e não as aceita como modalidade de tratamento ou como fonte de desafios conceituais críticos.
Todas as evidências publicadas em periódicos e livros profissionais não foram suficientes para desafiar a atitude, profundamente arraigada, que foi estabelecida em relação aos estados holotrópicos na primeira metade do século 20. Os problemas resultantes da auto-experimentação não-supervisionada dos jovens dos anos 60 e as concepções errôneas disseminadas por jornalistas em busca de sensacionalismo complicaram o quadro ainda mais e não permitiram uma avaliação realista do potencial dos psicodélicos, assim como dos riscos asso­ciados à sua utilização.
Apesar das avassaladoras evidências do contrário, os psiquiatras da cor­rente dominante continuam a encarar todos os estados de consciência holotrópica como patológicos, desconsideram as informações geradas em pesquisas relativas a esses estados e não fazem distinção entre estados místicos e psicose. Eles tam­bém continuam a utilizar vários meios farmacêuticos para suprimir, indis­criminadamente, todos os estados não-comuns de consciência que ocorrem es­pontaneamente. É impressionante a que ponto a ciência dominante tem ignora­do, distorcido e interpretado erroneamente todas as evidências relativas aos es­tados holotrópicos, sejam oriundos de estudos históricos, religião comparada, antropologia ou várias áreas da moderna pesquisa de consciência, tais como parapsicologia, terapia psicodélica, psicoterapias experienciais, hipnose, tanatologia ou trabalhos laboratoriais efetuados com técnicas de alteração men­tal.
A rigidez com a qual os cientistas da corrente dominante têm lidado com as informações acumuladas por todas essas disciplinas é algo que se esperaria de fundamentalistas religiosos. É muito surpreendente quando tal atitude ocorre no mundo da ciência, já que isto é contrário ao próprio espírito do questionamento científico. Mais de quatro décadas de pesquisas da consciência me convenceram de que um exame sério dos dados sobre estados holotrópicos teria conseqüênci­as de grande alcance não apenas para a teoria e prática da psiquiatria, mas tam­bém para a científica visão de mundo ocidental. A única forma pela qual a ciên­cia moderna pode preservar sua monística filosofia materialista é a exclusão e a censura sistemáticas dos dados relativos aos estados holotrópicos.
Conforme vimos, a utilização do potencial de cura dos estados holotrópicos é o desenvolvimento mais recente da psicoterapia ocidental, se não considerar­mos o breve período da virada do século passado que discutimos anteriormente. Paradoxalmente, em um contexto histórico maior, é também o mais antigo mé­todo de cura e pode ser rastreado até os primórdios da humanidade. As terapias que utilizam os estados holotrópicos representam, portanto, uma redescoberta e interpretação moderna dos elementos e princípios que foram documentados por antropólogos que estudaram formas antigas e aborígenes de cura espiritual, principalmente vários procedimentos xamanísticos.

Implicações da Moderna Pesquisa de Consciência para a Psiquiatria
Como mencionei anteriormente, a psiquiatria e a psicologia ocidentais não vêem os estados holotrópicos (com exceção dos sonhos que não sejam recor­rentes e assustadores) como tendo um potencial terapêutico e heurístico, mas sim como, basicamente, fenômenos patológicos. Michael Harner um antropólo­go bem-conceituado na academia que passou por uma iniciação xamanística durante seu trabalho de campo na selva amazônica e que pratica o xamanismo, sugere que a psiquiatria ocidental é gravemente tendenciosa em pelo menos duas formas significativas. Ela é etnocêntrica, o que significa que ela considera sua própria visão da psique humana e da realidade como a única visão correta, supe­rior a todas as outras. Ela também é cognicêntrica (uma palavra mais correta tal­vez seja pragmacêntrica), significando que leva em consideração apenas as experi­ências e observações nos estados comuns de consciência (Harner, 1980).
A falta de interesse e o pouco caso dos psiquiatras em relação aos estados holotrópicos resultou em uma abordagem culturalmente insensível e uma ten­dência a considerar patológicas todas as atividades que não podem ser compre­endidas no contexto estreito do paradigma materialista monístico. Isso inclui a vida ritual e espiritual de culturas antigas e pré-industriais e toda a história espi­ritual da humanidade. Ao mesmo tempo, essa atitude também ofuscou o desafio crítico conceitual que o estudo de estados holotrópicos traz para a teoria e a prática da psiquiatria.
Se estudarmos, sistematicamente, as experiências e observações associa­das aos estados holotrópicos, isso levaria, inevitavelmente, a uma revisão radical de nossas idéias básicas sobre a consciência e a psique humana, e a uma aborda­gem totalmente nova da psiquiatria, da psicologia e da psicoterapia. As mudan­ças que teríamos de fazer em nossa forma de pensar incidem em várias grandes categorias.

A Natureza da Psique Humana e as Dimensões da Consciência


A psiquiatria e a psicologia acadêmicas tradicionais usam um modelo limi­tado à biologia, à biografia pós-natal e ao inconsciente individual freudiano. Para poder explicar todos os fenômenos que ocorrem durante os estados holotrópicos, temos que fazer uma revisão drástica da nossa compreensão das dimensões da psique humana. Além do nível biográfico pós-natal, a nova cartografia ampliada inclui ainda dois outros domínios: o perinatal (relacionado ao trauma do nasci­mento) e o transpessoal (que compreende memórias ancestrais, raciais, coletivas e filogenéticas, experiências cármicas e dinâmicas arquetípicas).

A Natureza e a Arquitetura de Desordens Emocionais e Psicossomáticas

Para explicar várias desordens que não têm base orgânica ("psicopatologia psicogênica"), a psiquiatria tradicional utiliza um modelo que se limita a trau­mas biográficos pós-natais ocorridos durante a infância e a vida adulta. A nova compreensão sugere que as raízes de tais desordens vão bem mais fundo, inclu­indo contribuições significativas do nível perinatal (trauma de nascimento) e dos domínios transpessoais (conforme especificado acima).

Mecanismos Terapêuticos Eficazes

A psicoterapia tradicional só conhece os mecanismos terapêuticos que operam no nível do material biográfico, tais como a lembrança de eventos es­quecidos, a suspensão de repressão, a reconstrução do passado a partir de so­nhos ou sintomas neuróticos, o reviver de lembranças traumáticas e a análise de transferência. A pesquisa holotrópica revela vários outros importantes mecanis­mos de cura e de transformação da personalidade que se tornam disponíveis quando nossa consciência alcança os níveis perinatal e transpessoal.

Estratégia da Psicoterapia e da Auto-Exploração


O objetivo das psicoterapias tradicionais é alcançar uma compreensão in­telectual de como a psique funciona, o motivo do desenvolvimento dos sintomas e o que eles significam. Essa compreensão torna-se a base para o desenvolvimen­to de uma técnica que os terapeutas possam usar para tratar seus pacientes. Um sério problema com essa estratégia é a gritante falta de concordância entre psi­cólogos e psiquiatras em relação às questões teóricas mais fundamentais, do que resulta o espantoso número de escolas de psicoterapia que competem entre si. O trabalho com estados holotrópicos mostra-nos uma surpreendente e radical al­ternativa - a mobilização da inteligência interna profunda dos clientes que guia o processo de cura e transformação.

O Papel da Espiritualidade na Vida Humana

A ciência materialista ocidental não tem lugar para qualquer tipo de espiritualidade e, na realidade, considera-a incompatível com a visão de mundo científica. A moderna pesquisa da consciência mostra que a espiritualidade é uma dimensão natural e legítima da psique humana e do plano universal das coisas. Contudo, nesse contexto, é importante enfatizar que essa declaração apli­ca-se à espiritualidade genuína e não às doutrinas das religiões organizadas.

A Natureza da Realidade: Psique, Cosmo e Consciência


As necessárias revisões discutidas até este ponto relacionavam-se à teoria e à prática da psiquiatria, psicologia e psicoterapia. Contudo, o trabalho com esta­dos holotrópicos traz desafios de natureza muito mais fundamental. Muitas das experiências e observações que ocorrem durante esse trabalho são tão extraordi­nárias que não podem ser compreendidas no contexto da abordagem monística materialista da realidade. Seu impacto conceitual é de tão longo alcance que mina as conjecturas metafísicas mais básicas da ciência ocidental, principalmen­te aquelas relativas à natureza da consciência e à sua relação com a matéria.


(Grof, 2000)

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